terça-feira, 8 de abril de 2008

O Problema dos Orcs

João César das Neves
Diário de Notícias :: 2008.04.07

Toda a gente sabe o que são Orcs. Mas quem procurar uma descrição exacta destes seres malvados e nojentos não a encontra nos volumes de O Senhor dos Anéis. A Wikipedia tem de se socorrer de uma carta (#210) do autor, John Ronald Reuel Tolkien, em que os Orcs são comparados a mongóis. Este facto é muito curioso se o aplicarmos à opressão chinesa no Tibete.

Orcs não são um povo, mas uma repugnância. Nesta figura literária, Tolkien quis corporizar toda a repulsa que sentimos pelos actos brutais e vis. O protótipo está naturalmente nos antigos bárbaros, como os mongóis, avançando em hordas contra a civilização. Não era apenas conflito e violência, mas uma questão de asco e náusea perante monstros inumanos.

O avançar dos tempos não eliminou essa raça repelente. Basta abrir os nossos jornais e vemos muitos denunciados como Orcs. Banqueiros ou pedófilos, comunistas, cristãos, drogados ou fumadores têm sido vistos assim. Ultimamente, os países árabes e o Irão com o terrorismo, mas também a China com a opressão das minorias, a Índia com as castas e a África com os ditadores surgem deste modo.

Os próximos Jogos Olímpicos levantam um problema curioso no tratamento de Orcs. A China organiza a grande competição como forma de obter respeito, entrar no concerto das nações e deixar de ser considerada um monstro. Mas, como era inevitável, a atenção mediática traz ao de cima todos os crimes, perversões e abusos que a mancham. O resultado pode ser exactamente o oposto do pretendido.

Como nos devemos comportar perante Orcs? É difícil saber porque, por um lado, dialogar e entabular relações é a única forma de progredir e melhorar a condição das vítimas. Por outro não se pode pactuar com os atropelos e o silêncio torna-se cúmplice. Lidar com Orcs é terrivelmente complexo, como Frodo e Sam descobriram facilmente.

A questão piora porque, quando olham para o Ocidente, os chineses, muçulmanos, indianos e africanos vêem... Orcs. Como Roma antiga, nós não somos a sociedade exemplar que os bárbaros devem imitar, mas uma cultura em decadência que lhes causa repulsa. A pornografia e o declínio da família, a desobediência civil e o abandono das tradições, a educação laxista e desorientada, a exaltação do divórcio, aborto e homossexualidade fazem-nos parecer verdadeiros Orcs às outras civilizações. Para não falar das caricaturas e filmes que insultam outras culturas em nome da liberdade de expressão. A sobranceria com que impomos os nossos valores, por vezes à bomba, aumenta o desprezo.

O pior problema dos Orcs está nos que se orgulham de o ser. A paradoxal atracção pelo mal leva essa repulsa a transformar-se por vezes em emblema de identidade. Isto existe em todas as épocas e locais, mas nunca se viu tanto como na nossa sociedade, sobretudo nos jovens. O berço das filosofias punk, dread, gótica e satânica é aqui, e elas são apenas o extremo de uma multiplicidade de atitudes anti-sociais. Muitas figuras públicas e pessoas comuns anseiam por se mostrar chocantes e repelentes, a arte e a televisão são frequentemente grotescas e repugnantes. Os chineses e árabes nunca disseram tanto mal de nós como nós dizemos de nós mesmos. Somos a primeira civilização que se despreza radicalmente a si própria.

Ser Orc é, em certa medida, relativo, cada um acusando o outro disso. Talvez sejam as outras culturas quem tem razão na avaliação do Ocidente. Aliás, a alegoria de O Senhor dos Anéis é uma crítica severa à sociedade industrial. Mas é urgente romper o relativismo e estabelecer, no diálogo entre as culturas, a certeza de que os direitos humanos não constituem uma ideia ocidental, mas um princípio universal. Mais importante, é preciso assegurar que os Orcs, por maior repulsa que os seus hábitos nos causem, são sempre humanos e têm de ser tratados com respeito. Se fizermos isso aos nossos monstros é mais fácil convencer disso os que nos consideram monstros. Correr, saltar e jogar com Orcs é uma boa maneira de o conseguir. Este é o valor dos Jogos Olímpicos na China.

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