terça-feira, 16 de setembro de 2008


Miguel Gaspar

Público :: 2008.011.09


O petróleo está outra vez mais barato. E já nos sentimos menos angustiados quando vamos a uma área de serviço. Mais barata, a gasolina é mais democrática - independentemente do número de octanas. Mas a democracia, hoje em dia, está a ficar parecida com uma bomba de gasolina. Se o preço do combustível subir muito, os camionistas bloqueiam estradas, a economia mete a marcha-atrás, o consumidor fica aflito - e os governos entram em pânico.

Felizmente para todos, o século XXI trouxe uma grande invenção, que é a democracia a gasóleo. Angola ou Rússia são bons exemplos desse tipo de democracia. Tal como a gasolina pode ser medida em octanas, essas "democracias" são medidas através da incidência do partido no poder. Nas primeiras eleições em 16 anos, verificou-se que a democracia angolana tem agora 82 por cento de índice de partido no poder. Na Rússia, esse índice anda à volta dos 70 por cento. O ponto comum aos dois regimes é, evidentemente, serem movidos a petróleo.

Por isso é interessante perguntar quanto custa o litro de democracia nos dias que correm. Em Angola, os observadores da União Europeia declararam que as eleições não foram livres nem justas, mas decorreram num clima de serenidade, apesar de tudo. Já o nosso Presidente, o nosso primeiro e o nosso presidente da Comissão Europeia foram mais entusiásticos. Em particular o nosso primeiro, que se declarou "satisfeito" com um processo que considerou "transparente, livre e democrático". E se fosse ali no Beato (onde em tempos se imaginou que havia petróleo) valeria aquela coisa de não haver cadernos eleitorais ou boletins de voto suficientes? É tudo uma questão de critério. As eleições angolanas foram consideradas um exemplo para África porque, ao contrário do Quénia e do Zimbabwe, lá não dão pancada na oposição. Mas, ao contrário do Quénia e do Zimbabwe, a oposição não estava em posição para ganhar.

O preço da democracia em África, portanto, é barato. Num certo sentido, é possível pensar que o preço da democracia estará cada vez mais indexado ao preço do crude. Se não dependesse tanto do petróleo e do gás russos, a UE estaria a usar outro tom com Moscovo. Mas que capacidade de resistência teriam as democracias europeias se a Rússia cortasse a torneira do combustível este Inverno?A crise actual é o resultado de um processo que está virado do avesso há muito tempo - basta lembrar o Kosovo. Só se ouve falar na importância da adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO.
No entanto, como muitos analistas têm defendido, o importante é alargar mais para leste a União Europeia e não a NATO. Mas a Europa não dará um passo em relação a Kiev, por causa dos russos. E isso mesmo com Moscovo isolada - até agora só a Nicarágua reconheceu a independência da Abkházia e da Ossétia do Sul. Enquanto os EUA falam cada vez mais na expansão da NATO na Europa, os europeus falam cada vez menos no alargamento da UE.
Há dias, o colunista do Financial Times Gideon Rachamn escreveu que defender a democracia na Ucrânia e na Geórgia "é uma forma de manter a esperança que a Rússia, um dia, vire as costas ao autoritarismo". Aproximar a Ucrânia da UE permite manter viva a expectativa, de que a Rússia deixe um dia de ser imune ao contágio democrático. No longo prazo, o que conta é a forma como a Rússia evoluirá, mas isso deixou de ser uma preocupação. A nossa convicção na democracia parece estar a desaparecer. E isso enfraquece o peso da UE a nível global.
Estamos menos dispostos a dar o litro pela democracia, em nome do realismo do litro de gasolina. E o que acontecerá quando o litro de democracia ficar demasiado caro?

Sem comentários: