João César das Neves, Professor universitário
Diário de Notícias :: 2008.04.21
Nas últimas semanas deu-se um fenómeno histórico único e paradoxal. Pela primeira vez no mundo há um crash da Bolsa numa economia comunista. Na Cidade de Ho Chi Minh (antiga Saigão), no Vietname, o mercado de capitais, criado em 2000, rebentou a bolha inflacionista que fizera subir astronomicamente a cotação das acções desde meados de 2006. Seguindo as leis financeiras, os títulos caíram em média 44% no primeiro trimestre de 2008 (ver The Economist, 3 de Abril).
A maior parte dos observadores não sente o espanto da situação, porque já não considera marxista a economia vietnamita, como a chinesa. Pode tratar-se de sistemas políticos nominalmente colectivistas, dizem, mas o aparelho produtivo há muito se rendeu às leis liberais. Afirmar isto constitui um erro terrível, porque esses países têm mesmo regimes sociopolíticos comunistas. Basta ouvir as declarações dos responsáveis ou analisar os seus números e instituições, os limites a mercados e propriedade, restrições políticas e administrativas, imposições de redistribuição, para constatar que têm muito pouco a ver com os vizinhos.
É verdade também que estão muito longe do velho "plano quinquenal" e das loucuras leninistas e maoistas. Mas o nosso regime capitalista também tem muito pouco a ver com o liberalismo do século XIX. É provável que, se hoje visitassem a China e o Vietname, Estaline ou Ho Chi Minh ficassem horrorizados com o que ali se passa. Mas também é verdade que Lenine ou Mao se sentiriam bastante à vontade se lessem as directivas comunitárias, conhecessem a ASAE ou analisassem o nosso Serviço Nacional de Saúde, sistema educativo, agricultura e outros sectores. Qual evoluiu mais no último século, o capitalismo ou o marxismo?
A verdade é que assistimos, também pela primeira vez na História, ao sucesso económico de duas sociedades comunistas. A China e o Vietname têm vindo a bater recordes de crescimento e transformação, assustando os vizinhos, enquanto contribuem para aguentar o dinamismo mundial. Claro que tiveram de ajustar os seus regimes, pois só poderiam crescer respeitando os teoremas da Economia que, com resultados desastrosos, os seus antecessores ignoraram, como Fidel Castro e Kin-Jong-Il ainda ignoram. Mas isso não faz delas economias capitalistas.
Goste-se ou não, China e Vietname estão a fazer notáveis inovações no campo socioeconómico, possivelmente realizando o sonho revolucionário de criar uma alternativa credível à sociedade ocidental. O mais notável é a apatia dos especialistas, em particular da esquerda. Havendo finalmente um desenvolvimento económico espantoso em sociedades comunistas, seria de esperar que os partidos revolucionários estivessem hoje a estudar intensa e cuidadosamente essas experiências, como fizeram nos tempos em que elas destruíram as respectivas sociedades. Parece que os nossos activistas só se interessam por revoluções falhadas.As razões deste desinteresse são várias. Primeiro, as actuais inovações não foram concebidas por intelectuais ocidentais barbudos e despenteados, e os nossos esquerdistas, apesar da retórica, são muito chauvinistas. Em segundo lugar, depois das terríveis desilusões das décadas de 1980 e 90, esses partidos não querem mais ouvir falar de economia. Sobre esse tema sustentam os mínimos, com a retórica inflamada escondendo a falta de suporte ideológico. A esquerda ocidental desistiu de revolucionar a empresa e o mercado para se dedicar a revolucionar a família e o sexo. Aí existem oportunidades de fazer algo novo e progressista, desmantelando aquilo que a detestada burguesia e a odiada Igreja edificaram.
A terceira razão é mais profunda. O sonho da esquerda é a certeza de Francis Bacon em 1620: a "vitória da arte sobre a natureza" (Novum Organum I, 117). Antes na economia com o plano quinquenal, agora no sexo com o planeamento familiar, o propósito é sempre a ânsia utópica da perfeição materialista. Este crash vietnamita confirma o repúdio ideológico: a esquerda só admite um sistema onde as Bolsas só subam.
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