Vasco Pulido Valente
Público :: 2008.04.05
Com a idade durmo cada vez menos: cinco horas normalmente, seis com alguma sorte. O grande terror é, por isso, acordar de madrugada ou no meio da noite e andar por casa sem ocupação, à espera que o sono volte ou que o tempo passe.
Para evitar este vexame da terceira idade, tento não me deitar cedo e fico horas sem fim imbecilizado e boquiaberto a ver televisão. O que vejo não deixa de ser curioso e de certa maneira intrigante como retrato do Ocidente contemporâneo, ou, se quiserem, da América contemporânea. De série para série e de filme para filme, os temas não mudam: primeiro, a "beatificação" da mulher; segundo, a "sacralização" da criança; e, terceiro, a obsessão com a morte. Não a morte "clássica" pela violência, relativamente rápida e distante: a morte "representada" com franqueza pelo cadáver.
Numa era de feminismo, ainda militante, a "beatificação" da mulher não surpreende. Desapareceu a vampe, a espia, o ogre doméstico; a mulher anos 30 e 40, que seduzia, atraiçoava e explorava o homem. Hoje só há a "mulher-herói" mais forte e competente do que o homem, ou a "mulher-vítima", que o homem (o serial killer ou o oportunista brutal) rapta, viola, tortura e assassina. Tudo isto está na ordem do dia e é sempre pretexto para a mesma história cautelar: não confiar nunca no macho da espécie.
E daqui vem, evidentemente, como corolário, a "sacralização" da criança. A criança inocente, incorrupta, quase angélica, que o adulto perverte e atormenta e que usa como objecto do seu prazer (o pedófilo) ou do seu interesse (da família perversa ao criminoso comum, que "trabalha" prosaicamente para o resgate).
A mulher e a criança da televisão ainda se compreendem. O que já não se compreende tão bem, numa cultura da saúde, é o fascínio pelo cadáver. Uma patologista é a personagem principal da série A Patologista (naturalmente) e da série Ossos. Nos CSI (Las Vegas, Miami, Nova Iorque), poucas vezes faltam uns minutos de autópsia, com a exibição, bastante realista, de um estômago ou de um fígado, de um cérebro ou de um coração. Como não faltam vários géneros de corpos putrefactos. Será que as pessoas precisam, e gostam, de saber onde as vai levar tanta saúde? Ou será que o espectáculo da matéria humana decomposta esconjura a morte? Pelo menos, na ausência consoladora de uma outra vida, a miséria desta atrai o Ocidente. Para além daquilo, não existe mais nada.
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